terça-feira, 13 de abril de 2010

Devaneios de uma criança


“Quando criança costumava por sal em cima das lesmas, adorava velas a dissolverem-se diante dos meus olhos, esboçava um sorriso e tudo, a crueldade sempre foi divertida, para mim.
Sabem porque é que os sal tem esse efeito nas lesmas? Porque se dissolve na água que faz parte da pele das lesmas, também resulta com caracóis e sanguessugas e ate na minha pele, na verdade resulta em todos os seres que tem a pele demasiado fina e frágil para se defenderem de si próprias”
Na minha escola no nono ano havia rapazes mais altos que as professoras, vozes grossas, faziam a barba e havia rapazes como eu que eram inteligentes mas a sua inteligência não se notava nas notas, rapazes como eu que rezava todas as noites para que chegasse a puberdade.
Eu era daqueles rapazes que não usava o urinol mesmo que precisa-se apenas urinar, não queria faze-lo junto a um rapaz gigantesco do decimo segundo ano, o que podia fazer algum comentário sobre, bem o facto de ser do nono ano enfezado sobretudo nas partes baixas. Em vez disso, entrava numa casa de banho e fechava a porta para ter privacidade.
Gostava de ler as coisas que estavam escritas na casa de banho, uma delas tinha uma serie de anedotas temáticas, outros escreviam a lista de raparigas que faziam broches, havia uma que tinha umas 30 vezes a frase: o João é maricas.
Eu não conhecia o João, achava que já nem devia ser aluno da escola, mas interrogava-me se o João alguma vez teria entrado na casa de banho e se tivesse fechado como eu o fazia.
Era um refugio, não tinha de me preocupara com o facto de passar junto dos alunos com estilo e ser empurrado e ter de ouvir as suas gargalhadas de merda nem ter de olhar para a sua caras feias cheia de espinhas, conseguia lembrar-me de todas as humilhações que me tinham feito era impossível esquecer.
Só precisava de sair dali para que os meus pés acompanhassem a minha mente, mas ao semicerrar os olhos para o sol poente, ainda conseguia ver a sucessão de imagens no interior, das palperas: o ar frio atingir-me o rabo o leite entornar-se no meu pénis, as gargalhadas deles e a Maria a virar a cara para o lado. Muitas coisas destas me foram feitas até que um dia encontrei o que há muito procurava; toquei-lhe fria, maciça, hipnotizante, toquei ao de leve no gatilho, envolvendo a arma na minha mão, aquele peso ligeiro e suave! Perfeita.
Não sabia que padrões podia o sangue fazer ao salpicar numa parede, arte abstracta é o que lhe chamo, a vida abandonava os pulmões de uma pessoa em primeiro lugar e os olhos em ultimo.
Havia frases feitas para a perda de um ente querido, pela perda de um animal de estimação amado, mas ninguém sabia as palavras certas para reconfortar alguém que matara 10 pessoas. Sim eu matei 10 pessoas, dez rapazes e raparigas que me fizeram a vida negra durante muito tempo e ninguém se importou com isso.
Hoje escrevo a minha carta de despedida
Mãe estou a ouvir a musica que me deixaste, Haja o que houver - Madredeus
Quando lerem esta merda já estarei morto.
Não podemos desfazer o que já aconteceu, não podemos retirar uma palavra que já ditei em voz alta. Pensarão em mim e desejarão, ter sido capazes de me convencer a não fazer isto. Tentarão descobrir o que deveriam ter dito, o que deveriam ter feito. Suponho que devia dizer-vos: não se recriminem a culpa não é vossa, mas isso seria mentira. Todos sabemos que não cheguei ate aqui sozinho.
Choraram no meu funeral. Dirão que isto não tinha de ser assim,. Comportarseao , como toda a gente espera que se comportem mas será que sentirão a minha falta?
Ou melhor eu sentirei a vossa?
Será que algum de vos deseja ouvir a resposta a esta pergunta?
Algo existe desde que haja alguém para o recordar.
"19 Minutos" de vida
In Infacias de merda Rikardo Ramos

5 comentários:

  1. Como sempre gostei daquilo que escreveste.
    Acho que muitos de nós temos memórias menos boas da nossa infancia,apesar de essa epoca da nossa vida supostamente ser aquela em que deviamos ter menos preocupaçoes e sermos inocentes como uma criança deve ser,ou assim se pensava.

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  2. Amei, amei MESMO! Identifico-me muito com o texto infelizmente. Essa fase já passou, mas até sair dela sofri muito e não desejo isso a ninguém.
    Gostei muito do blog, tens imenso talento. Vou seguir-te assiduamente :)

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  3. Olá Flaviomata.
    Fico muito contente por teres gostado!
    infelizmente so agora é que abriram os olhos perante o problema do bullyng... enfim

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  4. Oh meu Deus.
    Começo a ter medo de ti. Bem, mas que grande texto...
    Não fui vitima de bullying. Pelo contrário, eu era uma verdadeira cabra. Nunca bati em ninguem. Mas admito que já fui muito desagradável para uma rapariga. Andavamos no 7º ano. Já foi há imenso tempo. Tambem escrevia coisas dela nas casas de banho. Ela chorava e eu gozava-a. Se me orgulho? NADINHA! Eu devia ter levado duas aberdoadas no focinho, para ver se amansava. Enfim...
    Beijo

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  5. Pois é, foi preciso uma criança morrer para as pessoas perceber que estas coisas acontecem mesmo.

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